terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

A Sucessora - Capítulo 5

Depoimento de:

            O Conselho terminou aos ares vespertinos, o Sol ainda se encontrava no centro do céu. Porém, após todas as decisões terem sido feitas, continuamos lá, conversando sobre os acontecimentos, expondo nossas expectativas, e colocando sobre a mesa, todos os problemas que se seguiriam. Mas ainda não era hora de se preocupar com isso, a única coisa que poderia ser feita naquele momento, estava em minhas mãos. Quando a noite começou a cair, algo que sempre me agradava quando não estava nos Bosques Ocultos, sai para começar logo minha jornada diária. Afinal, eu tinha apenas até o amanhecer, o que, mesmo que não pareça, é muito pouco tempo.
            Quando pisei para fora do Palácio, o esbelto Thorine me aguardava, a brisa, agora em uma temperatura extremamente agradável, movimentava os longos fios que cobriam seu pescoço. Os olhos azuis, agora brilhavam instantaneamente. Voamos durante alguns minutos, a atmosfera não era mais a mesma, raramente Thorine precisava bater as longas e singelas asas, era como se tivesse se tornado mais leve, patinando sobre água petrificada. Até que chegamos ao ponto, onde o que sempre me acompanhava deveria deixar-me, ainda era perigoso demais para um ser definitivamente mágico pisar em Nárnia. Nós fazíamos isso, pois era nosso trabalho, sabíamos como fazê-lo de forma que não nos notassem, e mesmo ele tento centenas de anos nas costas, nunca houvera sentido os ares da nova Nárnia. Enfim, deixe-o no berço de Kamille, geralmente ficava em casa, mas o que seguiria era um futuro incerto, era melhor não arriscar. Os outros o receberam muitíssimo bem, como sempre, Thorine estando na maioria das vezes comigo, digamos que como eu, não era muito socializado, mas possuía uma aura contagiante. Ele esperou meu consentimento e se foi. Correndo lado a lado com seus irmãos, algo que não acontecia muito, mas nessas raras chances, era como se voltasse à suas raízes. Naquele ponto, nem se lembrava mais de mim. Então olhei ao redor, fechei os olhos, concentrei toda energia, e em um milésimo de segundo, já havia ultrapassado o véu.
            O mundo lá fora era assustador, ninguém o reconheceria como Nárnia. O céu sem estrelas fazia da noite um infinito negro, nada comparado aos Bosques, que mesmo com a eterna noite, nunca chegou ao ponto de total escuridão. As poucas árvores existentes, sempre secas e sem vida, impediam o descanso das aves, tornando-se rara a visão de qualquer movimento celeste. Os poucos animais livres, magros e doentes, sem sinal algum de fala. Com os olhos tristes e caídos, quase pedindo socorro. Sei que se pudessem dariam gritos de dor, mas não podendo, soltando apenas gemidos terríveis. Essa era a pior parte de meu trabalho, ter que todas as noites, me deparar com aquela situação deplorável.
            Eu sempre começo pelos campos, onde as pessoas se deitam mais cedo. Eu sabia bem como elas se sentiam, esperando logo pegar no sono, para VIVER pelo menos por algumas horas em seus sonhos. Meu primeiro local de parada era sempre uma pequena Cabana, distante de qualquer outro aglomerado de pessoas, era a mais perto de onde o véu nos levava. Lá vivia uma senhora, com não menos que 60 anos. Era difícil que alguém em Nárnia vivesse por tanto tempo, mas a doce Cornelle havia superado essa estimativa. Seus dois filhos, ambos pais de família, raramente visitavam-na. Seu marido morrera há anos em um conflito narniano. Então a pobre mulher era praticamente sozinha. Era a alma humana mais pura de toda Nárnia, ela definitivamente, desde criança, acreditava na magia um dia existente aqui. Sendo assim, não exclusivamente eu, mas algumas de minhas irmãs, permitíamos às vezes que ela nos visse. Apesar de ela, no fundo, acreditar que eram apenas alucinações. Implantei seu sonho, ultimamente eu sentia sua essência ficar mais fraca, e Maryn já me avisara que ela não tinha mais tanto tempo. Era triste que fosse morrer tão só como estava. Segui nas próximas cabanas, pulando as que ainda possuíam alguém acordado. Até que os ranchos começaram a se transformar em casas maiores, onde encontrei a de Joseph, o filho mais velho de Cornelle. Nesta, a jovem Clarice ainda não dormia, era importante que eu implantasse nela, um sonho com a avó, chamando sua atenção para ela, Clarice tinha uma ligação muito forte com Cornelle, desde que nasceu fiz com que isso existisse entre elas, sempre usei a menina, como um meio de avisar o que a senhora passava.
            Gastei toda a noite em meus trabalhos diários, ou melhor, noturnos. Já havia percorrido toda Nárnia, e apenas o Palácio e seus arredores, faltavam. Isso era perigoso. Era madrugada, e eu ainda não achara ninguém que poderia ser o novo a pisar em nossa terra. Naquele ponto não era comum que pessoas estivessem acordadas, eu poderia muito bem ter voltado nas casas anteriores, onde os moradores ainda estavam acordados quando passei, mas não sei por que, decidi adentar a Muralha primeiro. As casas dos Nobres, e servos mais importantes, juntamente com o Palácio, ficavam protegidos por um extenso muro de pedras, de altura tremenda, impenetrável para meros mortais. Fui em todas elas, e nada. Dentro do Castelo, o mesmo rei insignificante. A mesma rainha. Os mesmos príncipes e princesas, eram cinco no total. Os mesmos servos. Estava quase desistindo, quando algo me veio à cabeça. As masmorras. Onde foras-da-lei, traidores e escravos inimigos passavam o resto de seus dias. Era óbvio, que se alguém que não era de Nárnia aparecesse por lá, iriam querer prendê-lo. Eu odiava a ideia de ter que ir até lá, a mente de todos os presentes, era amargurante. Mas sem demora fui até as Masmorras. Não havia nenhuma alma acordada. O lugar era repugnante, encardido e cheirava a sangue.  Oposto às selas, ficavam os instrumentos de tortura, era uma visão horrível. Infelizmente eu já tivera o desprazer de ver como funcionavam. Comecei pelo cômodo maior, os mesmos desgarrados de sempre. Segundo, um a menos, o que explicava o sangue ainda fresco no chão. Terceira e quarta selas, tudo igual. Quinta sela, uma a mais. Todavia, já o conhecia, um insano, contrário a política atual. Sexta e sétima selas, igual ao dia anterior. Oitava sela vazia, costumavam reserva-la para os mais perigosos. Nona sela, a menor e menos usada, diferente das outras, cercada por quatro paredes de concreto, com uma única porta estreita, com apenas uma humilde abertura no topo. Era uma espécie de solitária. Quando ultrapassei as paredes, foi que veio a surpresa. Toda encolhida, coberta por um sujo cobertor verde-musgo, estava o que me parecera de primeiro, uma criança. Chegando mais perto, notei que não era tão jovem quanto julguei, deveria ter uns 14 ou 15 anos, a mesma idade do Arvoredo da Vida. Por um pequeno vago, onde o cobertor não a tampava, pude notar seu vestido, branco, mas não de nossa época, parecia estranhamente diferente, estava rasgado e sujo. Seus longos cabelos negros tampavam parte do rosto, deixando a mostra apenas o olho esquerdo, que tremia incontrolavelmente. Eu não deveria fazê-lo. Não, não deveria. Mas não me contive. Com todo cuidado, sente-me ao lado da jovem, e com um movimento leve e delicado, tirei os fios de escuridão de sua face. Eu não pretendia ler suas memórias, mas ao tocá-la, foi inevitável. Todas vieram juntas, pois eu nunca havia as visto antes. Eu vira tão incrível alma, apenas milhares e milhares de anos atrás. Ela possuía uma bondade inacreditável, uma magia que já nascera dentro dela.
            Posso dizer que passei bastante tempo desvendando-a, pude ver que foi uma criança excluída e muito diferente das outras. Mas algumas pessoas não apareciam nas imagens, como se tivessem sido apagadas, excluídas da mente da menina. Podia ser o momento que se passava, ou então, por escolha dela própria, pois podemos fazer isso, se realmente desejarmos. Foi quando chegou a uma imagem, que me prendeu. Parecia recente, ela enxergava de uma porta entreaberta. A visão era apenas de um homem, de cabelos castanhos e barba crescida, um rosto rígido e, no momento, aparentemente, nervoso. Porém havia uma voz de mulher, que falava em um tom baixo e trêmulo.
            _Querido, não faz mal algum contar à ela algumas histórias.
            _Sim, não faria. Mas você ilude Janie demais com essas suas histórias impossíveis. Não vê? Ela já cresceu! Você a viciou nesse seu mundo imaginário. – Ele falava rudemente, e nesse ponto, já tinha se levantado, e a voz feminina soluçava – Os outros já falam. Nessa idade Janie deveria no mínimo ter um objetivo. Um pretendente. E ela se tranca, não quer saber de nada real. REAL, entende? Ela precisa de estrutura. De uma mãe, não uma amiguinha. Caso ela envelheça sozinha, a culpa será sua. Toda sua Susana!
            Depois disso os soluços da mulher, se transformaram em um choro incontido, abafado. O homem se acalmou, e saiu de vista, provavelmente foi até a mulher.
            _Me desculpe querida. Sabe que só quero o bem de Janie. Não percebe, mas não é só ela que é diferente das outras. Você não é mais criança. Seja lá o que tenha feito ou deixado de fazer, não há mais tempo para mudar. Você não pode trazê-los de volta.
            O choro da mulher se aguçou, agora parecia mais triste que nervoso.
            _Você não sabe de nada. Nunca saberá.
            Passos rápidos se aproximaram da porta, que foi aberta bruscamente. A mulher tinha, como a jovem, longos cabelos negros, e mantinha as mãos sobre o rosto. Ao notar que alguém escutara a conversa, se assustou, deixando a face livre. Era bela, um rosto delicado, porém marcado pelo tempo. Os olhos estavam vermelhos e inchados. Algo, lá no fundo, por trás do olhar triste, me lembrava alguém. O homem a chamara de Susana, sim? Claro, era realmente ela. Como poderia estar tão diferente? Então foi nisso que se tornou?
            Ao notar a que tudo se referia, me desconcentrei e perdi o foco. A imagem desapareceu como em uma explosão. Despertei na hora. A noite já findava, e um Sol caloroso nascia por trás das montanhas. Eu não implantara todos os sonhos, mas não haveria mais tempo. Porém Janie estava na minha frente, e eu sabia de que precisava. Antes de partir, voltei em um do quartos do Palácio, essa minha última ação, seria muito importante daqui algumas horas.

-X-

Esperavam-me ansiosas fora do Palácio. Inquietas, se agitaram mais ainda quando cheguei. Tratei logo de contar o que tinha encontrado, e todas ficaram surpresas, felizes e realizadas. Era o sinal. Mas poucos segundos depois caiu sobre todas, a preocupação. Como a traríamos para o Palácio? Dando um sorriso orgulhoso, o que eu confesso que sou especialista, disse com um ar bem superior – mas que todas entenderam:
            _Já cuidei de tudo!

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