Depoimento de:
As coisas
estavam mais agitadas que o normal. Geralmente vivíamos em uma dimensão calma,
tranqüila, que mesmo quando havia Guerra, permanecia intacta. Mas desta vez, o
conflito nos envolvia. Na verdade éramos o conflito. Os bosques estavam
diferentes, como a expressão na face de cada uma de nós. A chegada da humana
afetou tanto o mundo visível quanto o invisível, algumas entidades mal
conseguiam realizar suas tarefas e os narnianos já sentiam as mudanças na
atmosfera.
Glen trouxe um
fato intrigante à público esta noite. Aparentemente existe uma traidora entre
nós. É difícil crer que alguém que nos acompanhou durante tanto tempo, uma
criatura nascida do sopro do Grande Aslam, tenha se virado contra suas irmãs,
mas é ao que levam todos os vestígios. Todavia neste momento, a traição de uma
alada não é o mais importante. O encontro com a garota das masmorras é esta
manhã. Não houve muito tempo para preparar um plano, então nada seria certo
Dalí em diante. Nem todas as fadas desejavam me acompanhar, não achavam sensato
eu ter convocado um simples humano para nos ajudar. Porém elas não conheciam o coração de Liam,
Príncipe Liam para os narnianos. O jovem, considerado um tirano, apenas seguia
as ordens do pai, este sim um insolente. Dentro de si guardava uma alma exuberante,
eu o conhecia como a todos, e sabia que se o nomeássemos, este nos seria fiel. O
que mais me amedrontava era que, mesmo sendo o Príncipe um bravo cavalheiro, eu
houvera dado à ele uma missão, digamos, um pouco complicada, mas sabia que ele
conseguiria, de alguma forma. Ao me passar por Janie em seu sonho, percebi seu
repentino interesse em ajudá-la.
O encontro foi
marcado em uma espécie de abertura entre nossos dois mundos. Um bosque chamado
de Preâmbulo, muito pouco freqüentado, por sua aparência sombria.
Antes mesmo do
nascer do Sol, aquelas me seguiriam começaram a se preparar. Uma escura capa
negra nos tapava a face e o corpo, com um denso capuz que mal nos permitia a
visão. Levava certo tempo para que ficássemos preparadas, areias de trigo nos
abafava o brilho, águas praianas amenizavam o cheiro característico de cada uma
e as asas mantínhamos guardadas, mas era óbvio que achariam estranho um bando
de mulheres capadas cavalgando a pleno amanhecer.
Não pude, mais
uma vez, ser acompanhada de meu doce Thorine, sendo levada por um corcel negro
e rubro que habitava o berço de Kamille. Feinyl era jovem, mas por não ser
diferente de qualquer outro no mundo concreto, logo se adaptaria.
E então
seguimos viagem, no fim das contas apenas Ybelle e Igne permaneceram no
Palácio, tendo que ficar de guarda. Com o tempo todas concordaram com minha
decisão. O Sol já começava a se erguer, alaranjado e caloroso, mas ao mesmo
tempo tristonho e frio que mal esquentava os corações narnianos. Mais uma vez
aquela imagem brusca como um golpe, para alguma fadas, uma espécie de novidade
atormentadora. A poeira deixada pelo Beruna se levantava conforme os cascos
batiam no chão, o som da cavalgada me lembrava muito o produzido pelos quatro
Reis nos tempos de Ouro. Confesso que por um momento, uma fração de segundos,
aquele vento tocando levemente minha pele, a cena de minhas irmãs juntas e
gargalhando pela lentidão de Callen, e as crinas volumosas sendo levadas com o
ar, fizeram-me querer que aquilo jamais terminasse. Como muitas vezes desejei
que acontecesse. E então chegávamos ao Preâmbulo. Algumas se renegavam a
entrar, corvos voavam sob as árvores, e um canto irreconhecível saia de lá. Mas
tudo não passava de covardia. Após uma séria discussão, todas já estavam lá
dentro. Deixamos nossos condutores soltos, e subimos nos altos arvoredos do
Bosque, esperando ansiosamente, pela chegada de nossos convidados.
Lá
permanecemos durante alguns minutos, o silêncio era doloroso, e a troca de
olhares era frequente. Até que, depois de um tempo, a calmaria foi interrompida
por um galopar pesado e rápido, que foi gradativamente ficando mais leve, conforme
penetrava o bosque.
_Não precisava
ter corrido tão rápido. – disse uma voz leve e trêmula
_Se não
tivesse o feito, nos teriam alcançado. – dessa vez, uma voz mais rouca, que eu
conhecia bem, Liam!
A jovem desceu
da montaria com um pouco de dificuldade, parecia meio tonta. Em seguida o
príncipe, olhando rapidamente os arredores onde se encontravam.
_Agora pode me
dizer quem é? E por qual motivo aparente me tirou de lá? – disse a jovem.
Liam que ainda
observava o campo, parou instantaneamente, parecendo surpreso.
_Como? Você
mesma que me pediu para que a salvasse!
_O que diz?
Como posso ter pedido ajuda, sendo que desde que cheguei me trancafiaram
naquela sela imunda?
_Desde que
chegou? Como assim? Chegou de onde? Você não é de Nárnia? – Liam estava mesmo
nervoso, parecia ter se arrependido do ato que acabara de cometer.
_Não. Quer
dizer, Nárnia? É onde estou? Mas pensei que fossem apenas histórias! – disse Janie,
pensativa.
_Calma um
minuto. Você não é uma feiticeira?
_Feiticeira?
Veja bem, sei que não estou com as melhores vestes possíveis, e minha expressão
pode estar horrível... Mas achar que sou uma feiticeira é demais!
_Mas foi o que
me disse no sonho... – Janie se espantou, mas permitiu que Liam continuasse –
Que era uma das últimas e tinha sido capturada pelos guardas do Palácio. Me
prometeu que se a libertasse não voltaria à essas bandas. Agora que já chegou
ao seu destino simplesmente se nega a aceitar suas próprias falas?
_Não, não...
Como assim? Desculpe-me, mas devo ser a pessoa errada. – falou a jovem, com um
tom baixo e choroso.
Aquilo já
tinha ido longe demais, já o tínhamos observado por muito tempo, era hora de
parar a conversa, antes que algo fora dos planos acontecesse. Como tinha sido
eu a armar o circo, fui a primeira a me apresentar. O salto do topo da árvore
foi bruto, e produziu um som oco e abafado. Permanecia com as vestes negras, e
com o rosto coberto. Ao tocar o chão, ambos olharam para mim como um súbito
reflexo.
_Não és a
pessoa errada Janie. – disse olhando ainda para baixo, percebi o susto que a
jovem levou quando citei seu nome, ela rapidamente se escondeu por trás de
Liam.
A imagem era
mesmo meio conturbadora, ver um ser encapuzado dizer seu nome não é nada
interessante. Ao perceber o medo nos olhos deles, foi que tirei a capa. E seus
olhos se arregalaram mais ainda.
_Impossível! –
disse Janie
_Fantástico! –
disse Liam
É, as areias
de trigo ajudavam, mas em um ambiente escuro como o Preâmbulo, era inevitável
que nosso brilho aparecesse.
_O... O... Que
é você? – perguntou Janie
_Bem, é
difícil explicar querida. Principalmente à você. Basta saber que estamos do seu
lado. Queremos seu bem apenas. Precisamos de você acima de tudo. – respondi com
um pouco de dificuldade
_Estamos?
Queremos? Precisamos? – disse Liam, questionando a pluralidade das palavras.
Não precisei
dizer nada, em um enxame de faíscas todas as outras desceram das árvores,
surpreendendo Janie, e encantando Liam, que já imaginava a existência da
verdadeira magia em Nárnia. A jovem colocou as mãos no rosto, mostrando que
levara um verdadeiro choque. Ela não fazia idéia do que estava acontecendo.
Cheguei um pouco mais perto, para explicar o mal entendido.
_Alteza. Janie
não é uma feiticeira. Foi eu que a coloquei em seu sonho, para que a trouxesse
até nós. Como vê, não poderíamos nós mesmas ir buscá-la. Agradecemos em
conjunto por sua ajuda. Agora tem de nós, uma gratidão eterna.
_E quem são
vocês, exatamente? – disse ele, concordando com o agradecimento.
_Na teoria somos
seres alados dotados de poderes mágicos e responsabilidades terrenas. Devemos
manter certas atividades em ordem no mundo concreto. – respondeu Noreen, sempre
com a fala mais perfeita possível.
_Somos fadas. –
resumiu Kamille, que não se acostumava com as citações alongadas da Rainha da
Inteligência.
_Vocês
existem! Isso é fabuloso! – disse o príncipe, pasmo.
_Existimos e
precisamos ir antes que a manhã chegue por completo, depois fica complicado
passar pelos atalhos. – acrescentou Maryn, a sempre apressada, fada do tempo.
_Mais uma vez
lhe agradecemos Liam. Seremos sempre gratas, e estaremos prontas quando
necessitar de nossa ajuda. – estiquei a mão para Janie, a fim de que me
acompanhasse.
_Não! – disse ela
balançando a cabeça. – Não vou sem ele!
A atitude de
Janie espantou a todos, principalmente o príncipe, que olhava abismado para
ela.
_Não sei quem
são. Não tenho certeza. Não as acompanho só.
_É normal que
ela tenha medo, Ember. – disse Callen.
_Mas ele não
pode ir conosco. Nenhum humano pisa em solo imaterial. Janie é uma exceção. – a
possibilidade de dois humanos em nossa Terra era um golpe. – Mas... Anie?
_É complicado
Ember, para a entrada dela já perderemos parte do véu, e você sabe como ele demora
a se recuperar. Mas ele pode nos acompanhar até o limite.
O limite era o
ponto onde acabava o mundo material, e começava o nosso. Até lá, não haveria
problemas em sermos acompanhadas por Liam.
_Janie, ele
pode te acompanhar apenas até a entrada da passagem. A partir daí é perigoso
demais.
Ela olhou para
ele, era impressionante a cumplicidade que criaram apenas durante aqueles
minutos. Janie confiava nele, mais do que tudo naquele momento.
_Já ouvi histórias
sobre a magia da antiga Nárnia. Não imaginava que ainda existia algum vestígio
dela. Se existe, acredite, é confiável. – o príncipe a confortou.
Janie assentiu.
E ainda amedrontada e confusa, nos acompanhou. Durante a caminhada, percebia cochichos
entre eles. Ela ainda não se sentia segura.
Ao chegar ao
limite, a entrada foi um pouco árdua. Mas se concretizou. Pouco antes de
entrar, me direcionei à Liam, e dei meu último aviso:
_Não mencione
isso à ninguém. Vossa Alteza não faz idéia do que está para acontecer. Vosso
pai, o rei, não pode sequer imaginar o que fez. E ñão se preocupe com os
guardas que o viram, cuidaremos deles. Ah, e não se esqueça de dormir bem cedo,
para que possa ter bons sonhos... Talvez, com notícias de sua amiga.
O príncipe
ajeitou as rédeas e partiu. Agora teríamos que contar a Janie, sua origem. O
que não seria nada fácil.
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